Ele está armado


Ele está armado. Testa suada. Mãos trêmulas. Dentes que rangem. Ele odeia espelhos. Ódio imenso. Vodka.
Três horas da manhã. Quatro. E as vozes misturam-se. Nenhum alô. Nada de "como vais"... Nada de mãos quentes ou línguas sagazes. Contato algum. Ele está armado.
Whisky puro. Nem gelo, nem água.
Seria nota de rodapé com tiques de manchete. Úlcera perfurada tratada à base de Eno.
A mesa cresce. Vira quadra. O bar some. É o mundo. No mesmo lugar. Nenhum passo adiante. Ele farfalha sem vento como se fora uma folha medíocre. Submissa ao clima. Frágil e passageira. Ele ri, nervoso, sem qualquer sinal externo. Sem descuido. Discreto, afaga o conteúdo do bolso.
Armado.
Voltas intermináveis ao redor do quarteirão, pisando em lama, cocô e grama. Sem sair. Sem andar. Os pés simplesmente não descolam do assoalho. Grudento, marcado e lotado de histórias. Uma dose de rum, é claro.
Onde começam tais contos? À beira do lago, quietude e isopor? No banco do trem? Talvez na tenra idade onde interrogações multiplicadas encontram o eco que lhes cabe. Suficiente ou não. Bem e mal.
Já é manhã. O sol fustiga. Todos à porta. Fim. O fim. Um fim. "This is the end. My only friend. The end." O tempo rui. Como magma. Como argila. Como a saliva dos amantes. Ele está armado.
O copo de gim? Vazio.
Hora de ir. “Grand finale”! Cadeiras sobre as mesas, esfregões em riste. Corpos modorrentos a levantar. Letargia e preguiça.
Sem perder tempo, o maluco cambaleia à porta e interrompe o movimento. Gritos hostis. Postura de homem-bomba. Mãos aos bolsos. Medo!!! Armado.
Tensão. Gestos bruscos. “O filhadaputa é traficante”. “É de rua e ‘tá’ com cano”! “Mendigo de merda”...
O dono do boteco leva os dedos ao 38! A arma sobe devagar.
O doido franze a testa. Refaz sua dança de rei lagarto e repete bobagens. Constrói legos desconexos. Repete encantos sem efeito. As mãos aos bolsos. O casaco gira.
Sol. Efígies. Reflexos. Luz turva. Olhos nublados. Manhã de sábado.
O louco vai tirando a mão do bolso. Lentidão. Eternidade. O bar man vai atirar.
O bar man vai atirar. E o louco sorri. Vinte dedos. Quatro membros. Cinco sentidos. Todos embargados. E a mão que sai do bolso. O bar man vai atirar.
Cinco, quatro, três, dois, um... O bar man...
... é impedido.
Testa suada. Mãos trêmulas. Dentes que rangem.
Uma mão serena impede o tiro.
Mãos trêmulas. Dentes que rangem.
A arma do louco?
Dentes que rangem.
Uma folha de papel.
Toda amassada.
Quatorze versos. Um soneto.
Paralisia coletiva. O desajustado alisa a folha com vagar religioso.
Ele tosse. Pigarreia. Ergue o “papiro”. E lê. Ele lê com fervor. Devoção. Um minuto. Trinta. Ninguém se move. Todos inertes. Doidos de pedra!
Lágrimas. Bocejos. Juras de eterno amor. O louco lê.
Olhos que fecham. Bocas trafegam. O louco lê.
Restos alcoólicos. Corpos tremendo. A leitura vai! Vai além...
Torpes horas em que os sentidos foram passear. Leitura.
Nada de vida. Elétrons gelados. Forças entrópicas. Finda a leitura.
Tortos ouvintes, um instante após, rumam às suas camas. Autômatos.
Passos mecânicos. Gestos em desconexão. Vozes plastificadas!
Virão as horas e nem vão lembrar. Nenhum deles vai lembrar.
Pobre do louco. Incompreendido. Desarmado. Quase alvejado.
Pobre louco...
Aaaaaah! O louco? Também não! Na boa? Ele também nem vai lembrar.
Pobre louco...
O louco? Ele procura outro bar!

Algum dia lá nos idos de alguns anos atrás.